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RESENHA COMPANHIA DAS LETRAS | “Uma História de Solidão” – John Boyne


Autor: John Boyne
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 416
Classificação: 5/5 estrelas

Desde que despontou no mercado editorial com a publicação do best-seller O Menino do Pijama Listrado, que vendeu milhões de exemplares, o irlandês John Boyne tem visto sua obra cada vez mais reverenciada em diversos círculos. Isto, obviamente, não sem mérito: o talento do autor em tecer histórias arrebatadoras e muitíssimo bem-escritas, somado aos personagens encantadores que traz à vida e à sua capacidade de transitar entre publicações para crianças, jovens e adultos, com uma versatilidade invejável, colocam-no entre um dos melhores nomes da literatura contemporânea europeia. Em seu último e mais pessoal livro até então — onde prova, novamente, seu primor —, Uma História de Solidão, lançado em 2016 pela Companhia das Letras, Boyne esmiúça com primazia um enredo inesperado e para lá de atual: a trajetória de um padre irlandês e sua visão privilegiada do cerne de uma omissa Igreja Católica imersa em escândalos de abusos sexuais contra meninos e meninas.

O protagonista de Uma História de Solidão, criado por Boyne após uma pesquisa rigorosa, tendo entrevistado membros do clero de Dublin, Roma e outras cidades para compreender intimamente a Igreja, é o padre irlandês Odran Yates. Numa narrativa não-linear, com cada capítulo fazendo saltos temporais e ambientados em anos distintos, o livro nos apresenta à Odran e a todo seu drama existencial. Conhecemos desde a infância conturbada em razão de uma tragédia familiar — que moldou todo o restante da vida do homem e que suavemente é retratada na capa da edição brasileira – à sua entrada no seminário, sem deixar de perpassar pela amizade com o intempestivo colega Tom Cardle, figura que desempenha um papel crucial para o desencadeamento da trama.

Do sobrinho gay à irmã com Alzheimer, das diversas referências históricas à misoginia (naturalizada) e racismo de membros da Igreja e caminhando, ainda, pelas transformações radicais — e impostas — que o mundo Católico enfrentou nas últimas décadas, quando os casos de abuso começaram a eclodir em massa na mídia e nas cortes de inúmeros países, John Boyne fala de tudo um pouco nesse romance, em um tom de crítica sutil, contundente; nunca cansativo e, certamente, jamais apelativo.

A estrutura da obra, com suas viagens de tempo e a narrativa em primeira pessoa, dá ao livro mais mistério do que se podia esperar. Em um ritmo de quase suspense, ainda que não possa ser encaixado a esse gênero (Uma História de Solidão é drama puro, em todos os sentidos da palavra), John nos faz mergulhar e viajar pelo passado de Odran como se estivéssemos ouvindo seu relato ali, declamado ao nosso lado. Dedicando capítulos inteiros a contar as histórias do padre e daqueles que o cercam, sem nunca perder de vista os diálogos afiados e as descrições incríveis pelos quais é conhecido, Boyne nos faz sentir na pele a tensão e o clima opressor que circula as personagens todo o tempo, bem como a solidão que encabeça o título do livro.

Enquanto narrador, Odran é de uma preciosidade rara. Entrar em sua mente e desvendar sua história é uma experiência cativante e inesquecível; mesmo nos parágrafos mais extensos, alguns que se desdobram por duas, quase três páginas, nos quais ele divaga sobre si, sobre seus familiares, sobre as mudanças e os muitos erros que cometeu, não conseguimos afastar a ânsia de destrincha-lo. Nós nos apiedamos do padre e, ao passo em que compreendemos suas escolhas, entendemos de onde ele vem e as dificuldades por quais passou, também gritamos com ele e, às vezes, imploramos para que seja menos condescendente, que se imponha.

Ele abriu bem os braços e sorriu para mim. “Quem de nós, padre Yates, tem a alma imaculada? ‘Aquele que estiver livre de pecado que atire a primeira’, lembra-se disso? Lembra-se do que aprendeu no seminário? ‘Somos todos joguetes do Diabo’. Mas precisamos lutar para manter nossos impulsos pecaminosos à distância. E lutaremos, ouviu bem? Lutaremos e venceremos. Faremos esses insignificantes se ajoelharem, nem que custe cada centavo que possuímos. (…)”.

Em tempos onde “Spotlight: Segredos Revelados” vence como Melhor Filme no Oscar ao retratar temática igual, parece não haver melhor momento para trazer, sem medo, esta discussão à tona. Nesse sentido, o irlandês é pontual; vemos de perto as modificações relacionadas ao tratamento da mídia e das pessoas para com a Igreja Católica, as tentativas dela de ocultar os esqueletos sujos dos crimes de abuso sexual infantil de seus sacerdotes e os jogos políticos de uma instituição em crise. A mensagem que Uma História de Solidão traz, também, é de discernimento: que, apesar de tudo, devemos ser ponderados. John combate duramente a generalização e os estereótipos, e, ao trazer uma figura como Odran — tão humana — para o centro do debate, nos relembra que o maniqueísmo é cego, acrítico, e que ódio e extremismo não compensam, venham de onde vier.

Nós nos perdemos na tapeçaria desafiadora e repleta de camadas que é Uma História de Solidão, porque se trata, de fato, desse tipo de leitura: contagiante, e inerentemente agoniante também. Então, à medida que as páginas vão ficando para trás, amontoadas, crescem as dores dos personagens, crescem a culpa e o medo, crescem o desejo por piedade e a solidão — essa mesmo que encabeça o título. No fim, Odran Yates, com sua bondade e o desejo de cumprir sua “vocação”, precisa correr em busca da própria redenção e lidar com os muitos demônios que o perseguem. Nem sempre é tarde demais para mudar, murmura John Boyne; mas o passado não pode ser fácil e simplesmente apagado com uma borracha…


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Pedro Vinícius

Blogueiro e (quase) escritor desde quando Lady Gaga desfilava com roupas de carne em premiações, Pedro Vinícius, 19, é fã incondicional de livros, séries, filmes, música, drag queens, Inês Brasil e tudo que envolve redes sociais. Atualmente, mora em Natal - RN e cursa Jornalismo na UFRN.

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